segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Decidi resistir

Parando para pensar no passado distante, que ideia foi essa de sonhar em ser pesquisadora no Brasil? Isso só pode ter saído de uma mente doentia ou ignorante demais para achar que isso tinha alguma chance de dar certo.

Nasci no Brasil, o maior dos países da América Latina, abençoado e amaldiçoado pelas riquezas que tem e que é capaz de produzir (desde que bem mandado pelo deus mercado, que diga-se de passagem tem interesse por ALGO, paga muito bem e no instante seguinte acha outro fornecedor mais em conta deixando quem dependia do ALGO na miséria). Por aqui não dá pra sonhar muito alto, pra ser pesquisadora, tem que ser professora universitária, de preferência em universidade pública. 

Por aqui temos uma elite tão mesquinha, mas tão mesquinha, que grande parte se formou (de graça) em universidades públicas e agora quer que elas sejam pagas. Sim, porque se o meu está garantido, que se dane quem vem atrás… E as cotas? "Cotas? Pra que cotas? Pro meu filho ainda por cima pagar pro coleguinha pobre? Coisa de comunista, cada um que se vire, trabalhando todo mundo consegue”.

Por aqui pesquisa básica não tem vez. Nem nas agências de fomento. Ou você sugere que a sua pesquisa vai trazer alguma ajuda para combater pragas ou doenças (estou falando de biologia, nem imagino como é nas outras áreas), ou as suas possibilidades são minúsculas de conseguir o que quer que seja.

Por aqui ser funcionário público é como ter uma doença contagiosa contraída num banheiro xexelento… Tem funcionário público que não assume que é funcionário público, vá entender. Funcionário público não tem o respeito de ninguém. Todo mundo pega a excessão como regra e acredita nas regras ditadas pela imprensa: funcionário público não trabalha, recebe mais do que merece: bando de vagabundos que não merecem o que ganham. Aliás, pra que funcionário público se tudo podia ser privado, né?

Por aqui ser professor também não é grande coisa. Aliás, ser professor funcionário público deve ser um xingamento dos piores, daqueles que eu nem tenho coragem de procurar um paralelo escatológico. Nem seus alunos, aqueles para quem você existe, te respeitam (tá bom, tem exceções, mas estou num mau dia, ok?). O poder público? Quer mais é que você desapareça, quanto menos professores, maior a ignorância e mais fácil de deitar e rolar nas nossas cabeças.

Por aqui teve um governo que investiu na ciência. Os laboratórios foram reformados (no meu tem até acessibilidade - se um cadeirante quiser trabalhar lá ele pode ir, tem até bancada feita especialmente e espaço para locomoção), teve dinheiro pra pesquisa. Até me senti no primeiro mundo. Quando a coisa começou a engrenar… Trocaram o governo. Qual foi uma das primeiras medidas? Fundir o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (até parece coisa de país desenvolvido) com o de Comunicações, aquele que também cuida de televisão (aquela que faz propaganda pro governo pra ele fingir que não é golpista). Aí o laboratório está pronto, lindinho, equipado e sem grana pra funcionar… Pensei em fazer um museu, para levar os alunos (inclusive os cadeirantes) para visitar onde seria um laboratório de pesquisa em evolução. Eu diria, emocionada, que naquele pequeno laboratório eu formaria um montão de gente para tentar compreender como se dá a diversidade biológica no Brasil, porque nos trópicos tem mais espécies que nas áreas temperadas, o que faz com que duas espécies se diferenciem, qual o papel das bactérias nesse processo etc etc etc… 

Mas por aqui também tem gente guerreira, e eu conheço uma pá bem cheia delas

Então não adianta nada isso de querer acabar com tudo. Comigo não. Estou na resistência. Escolhi este caminho e agora não há quem me tire dele. Se eu não conseguir fazer pesquisa em genética com os meus próprios dados porque não tenho dinheiro para gerar, faço com os dados que estão disponíveis na internet. Não há nada de errado em responder novas perguntas juntando dados pré-obtidos e que responderam a outras questões. Se ainda assim ficar difícil, vou me dedicar aos meus alunos mais do que nunca, vão ter que me demitir para parar de me ouvir misturando biologia, genética e evolução com história, geografia e política. Vou sair da universidade também, vou invadir a comunidade da cidade, dar um jeito de entrar nas escolas. Vou divulgar ciência para as crianças. Não há melhor maneira de estimular o raciocínio que pensando em ciência.

Agora decidi que quero um Brasil melhor para a próxima geração. Eu cresci no país do futuro (também da pizza, no mal sentido; do trambique, do jeitinho), conheci e ouvi falar de muita gente que lutou para que a próxima geração (a minha) fosse feliz. Quando entrei na a vida adulta, tive a impressão de que eu começara a viver no país do presente, e que tudo estava na direção correta. O que era bom durou pouco. O país do futuro tem que continuar eternamente sendo o país do futuro e nos agarramos nessa esperança como o miserável que sabe que vai para o céu e que seus algozes vão para o inferno. O país do futuro, na prática, voltou para o mapa da fome e eu aqui reclamando que não tem dinheiro pra pesquisa… Devo ser uma idiota mesmo.


Não importa, uma vez idiota, sempre idiota. Vou continuar tentando fazer pesquisa, e pior, formando pesquisadores. Enquanto eu me aguentar financeiramente coloco meu dinheiro no laboratório sempre que for necessário. Quero gente que pensa do meu lado, quero gente que continue pensando depois que já não estiver do meu lado, e que estimule mais gente a pensar. Quero crianças pensantes na minha comunidade e nas comunidades em volta. Quero que a próxima geração tenha fome de saber e que saiba onde nasceu, pra romper com esta sina maldita. Quero que esta gente que vem depois saiba que estamos na América Latina e que sempre que tentamos levantar a cabeça vêm de fora e nos esmagam (com a ajuda de muita gente aqui de dentro, diga-se de passagem). Quero que as crianças conheçam a nossa história e vejam que sempre foi assim, mas que não precisa ser e que não queremos que continue sendo. 

domingo, 6 de agosto de 2017

A América Latina, a Escravidão e Cotas nas Universidades _ O que aprendi nos últimos 10 anos

Meu abandonado blog fez dez anos outro dia e eu nem me lembrei… Who cares? Pois é, nem eu! Mesmo assim, como me lembrei dele, comecei a ler os posts de 2007. Eu era recém contratada na UFV, estava super feliz porque finalmente tinha um salário decente e alguma estabilidade financeira. Estava feliz também por causa dos alunos, estava confusa por causa do novo sistema de cotas e relativamente satisfeita com os rumos que o Brasil estava tomando.

Eu não tinha opinião formada sobre cotas nas universidades, que cheguei a pensar que fossem uma espécie de racismo às avessas. Hoje me sinto muito idiota por ter pensado assim e muito mais capaz de entender porque as cotas são tão importantes.

Foi pura ignorância, ou melhor dito, fruto de não querer enxergar e enfrentar a realidade. Acho que ao ficar mais velha (10 anos mais velha), além de ler mais e conhecer mais gente, adquiri um outro olhar sobre o tempo (a categoria “ano" significa cada vez menos para a minha existência, coisa de gente velha). Ainda hoje, conversando com um amigo no FB, ele me falou de uma conta cabalística que ele fez (ou ouviu de alguém): 400/128 = 3,125. Oi? Não entendi nada. Aí ele me explicou: “nosso país tem 400 anos de tráfico de escravos e 128 de libertação dos escravos".

O número também me perturbou. Não o número cabalístico, mas os 128 anos. Contando em gerações, são apenas 5. Há cinco gerações os negros foram abandonados nas estradas do Brasil pra se virar. Sem terras, sem ajuda financeira, sem o que coerm, pra onde ir ou voltar. Antes disso eram escravos, tinham que se submeter aos seus senhores. Foram arrancados da África para trabalhar na América Latina, foram primeiramente os responsáveis pelas "minas de açúcar" que a região produzia, minando a fertilidade das nossas terras e sua própria dignidade. Nem seus sobrenomes puderam manter. Hoje os negros carregam os sobrenomes de seus senhores, não podem sequer rastrear seus antepassados como o fazem tão orgulhosamente os descendentes de italianos e alemães por aqui (curiosamente os descendentes de portugueses não estão muito interessados em sua origem, por que será?).

Esse número me pegou em plena leitura do Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano. Estou convencida de que todo latino americano tem que ler este livro, pra entender decentemente sua história, que não é nada glamurosa apesar de ter tido momentos épicos de crescimento e desenvolvimento, que foram devidamente solapados pelas coroas que estavam no comando em cada momento. Comecei a entender porque estudar história é tão importante sempre, mas especialmente crítico no momento que estamos enfrentando no Brasil. Sempre pensei assim, mas só pensava e nunca me mexi para aprender história. Estive sempre envolvida com textos científicos da minha área e antes disso com ficção científica. É tudo muito legal, faz os neurônios funcionarem, mas história é fundamental para não fazer papel de palhaça!

Bom, voltando para os escravos e a América Latina. Fazendo um resumo bem chinfrim, condenável por qualquer leitor mais atendo e um verdadeiro sacrilégio para alguém que realmente estudou história, a América Latina tinha seus nativos: em realidade um povo que aportou aqui entre 14 e 10 mil anos atrás, provavelmente vindo da Ásia. Há quem diga que antes deles viveram nessas terras povos negróides, e que isso teria acontecido até cerca de 20 mil anos. Apesar de termos registros destas pessoas, não temos evidência de que tenham sobrevivido até a chegada dos asiáticos, mas isso é outra história. 

Estes povos que aqui estavam, que em seu conjunto foram chamados de índios (o que é uma estupidez relacionada ao fato de que os conquistadores acharam _ ou fingiram que acharam_ que tinham chegado às Índias), tinham cultura, costumes e religiões particulares, que foram solenemente ignorados pelos conquistadores. Estes povos foram sistematicamente exterminados até sobrarem bravos representantes que estão por aqui até hoje, para maldição dos grandes latifundiários (ou seriam senhores feudais?).

Bom, na América espanhola, os habitantes tinham construído impérios, dominavam construção de monumentos, diques, tinham plantações, tinham reis, sabiam matemática e astronomia. Eles conheciam o zero! Estes povos foram dizimados em batalhas e por doenças, tudo para que os espanhóis pudessem levar todo o ouro e prata que encontrassem (nos objetos sagrados ou nas minas, nas quais escravizaram os locais para que os metais preciosos fossem extraídos). O mais irônico desta parte da história foi que a Espanha nem enriqueceu com estas riquezas, que foram quase que inteiramente consumidas nas cruzadas que o rei CarlosV (do império austríaco) resolveu fazer pela Europa.

Falando em Europa, eles estavam saindo do feudalismo e embarcando no capitalismo. O ouro e a prata retirados da América Latina financiaram o início da revolução industrial na Europa. Como nada é eterno, o ouro acabou. Mas não tem problema, estas terras ainda tinham muito o que dar para a Europa, afinal, eles acharam o território, que portanto lhes pertencia, certo?

Enquanto para a Espanha foi fácil achar ouro e escravizar os moradores locais, os portugueses tiveram um pouco mais de dificuldade. É que os nativos do Brasil não estavam muito interessados em ouro e trabalhavam para subsistência (caça, pesca e uns poucos cultivos). No resto do tempo, eles faziam rituais, cantavam, educavam seus filhos, enfim, viviam… Isso lhes rendeu a alcunha de preguiçosos e os portugueses perceberam que era mais fácil exterminá-los do que tentar escravizá-los. Bom, aí começou a história de plantar cana por aqui. Açúcar era uma iguaria na Europa. Os ricos e famosos consumiam açúcar como sinal de ostentação, mais ou menos como trocar de carro ou de I-phone todo ano agora (você já parou para pensar que os ricos sempre ostentam o que é produzido por pobres e miseráveis em outra parte do mundo?).

E dá-lhe derrubar florestas para dar espaço às plantações e madeira para construir os engenhos e alimentar o fogo. Boa parte da Mata Atlântica nordestina foi literalmente queimada pelos engenhos de açúcar (madeira de lei para alimentar as caldeiras, simplesmente brilhante!). Mas não foi só isso. Eles precisavam de mão de obra para fazer o serviço. O que fizeram? Contrataram gente que estava sem trabalho na Europa e deram vida digna e condições de trabalho decentes? Claro que não. Era muito mais barato pegar um navio, ir até a África, capturar pessoas, colocá-las nos navios e transportá-las para o Novo Mundo. As condições de transporte eram as piores possíveis. Além de serem arrancados de casa, eram colocados em navios imundos para uma viagem sem volta para um lugar novo onde coisas bem piores os esperavam. Muitos morreram no caminho e apenas os mais fortes tiveram a sorte de sobreviver para serem tratados como animais por seus donos. Estes que aqui chegaram fizeram do Nordeste Brasileiro a região mais rica do planeta por alguns míseros anos. Como diz Galeano, não exatamente com estas palavras, “quanto mais cobiçado o recurso (no caso o açúcar), maior a desgraça que causou na América Latina”. 

Depois de algum tempo sendo arruinadas com a monocultura do açúcar, as terras litorâneas do Nordeste se exauriram. Foi quando descobriram o ouro nas Minas Gerais e os esforços da Coroa se deslocaram pra lá. Consequentemente, os escravos deveriam ser enviados para o porto do Rio de Janeiro, para depois irem para as minas, trabalhar em condições sub-humanas para retirar todo o ouro que pudessem para que Portugal pudesse crescer (ou pagar as dívidas com outros países, como por exemplo a Inglaterra - que estava em pleno desenvolvimento da revolução industrial, mas eu já falei disso…). A Inglaterra passou também a controlar o comércio de escravos para a América, que antes era controlado pela Holanda. Não sei bem como isso se deu, mas boa parte do ouro retirado do Brasil ia parar nas mãos dos ingleses, que além de vender os escravos ainda os vestia (até a roupa dos escravos era importada da Inglaterra pelos portugueses). 

Muita água ainda passou por debaixo das muitas pontes que os Negros levantaram no Brasil, mas o fato é que um dia a Inglaterra decidiu que a escravidão era imoral e que os Portugueses ("esses porcos imundos”) tinham que acabar com isso. Paralelamente tínhamos movimentos abolicionistas no Brasil e tudo acabou com a assinatura da nossa última Princesa. E todos foram felizes para sempre, certo? Errado. A escravidão acabou mas a sub-humanidade dos negros persistiu. Comece a contar os últimos 128 anos. Sem ter onde dormir ou o que comer, acabaram marginalizados. Coincidência ou não (não acredito em coincidências), começaram os estudos eugênicos na Europa. Raça superior, pessoas melhores que outras, medidas, estatística, genética… A superioridade era dada por medidas, como por exemplo, o tom de pele. Não demorou muito pra moda chegar no Brasil. Os negros já estavam à margem, vivendo mal, comendo mal, cheirando mal, muitas vezes tendo que recorrer a furtos para sobreviver. Os europeus, que também cheiravam mal mas eram lindos, legais, inteligentes e éticos, decidiram que negros eram inferiores pelo tom de pele. Era a desculpa que os ex-senhores de escravos precisavam para mantê-los à margem (bem como o resto da sociedade, branca, limpinha e pseudo-esclarecida). Hoje ainda escuto o discurso de que o negros são pobres porque não trabalham, porque não dão duro (sei lá o que isso significa), porque são preguiçosos… Será mesmo? Aí vem uma boçal dizer que “não tem certeza de que as cotas nas universidades são boas" - eu mesma, num post de de 2007. Tem que ser muito ignorante e ter tido uma vida muito boa mesmo para pensar que racismo não existia no Brasil antes das cotas. Isso é uma herança cultural, que temos que tomar consciência de que está errada antes tarde do que mais tarde.

Dez anos se passaram e eu vi a diversidade de cores aumentar nas salas de aula. Os alunos negros, como os demais alunos, são bastante diversos em termos de personalidade e rendimento escolar: alguns são tímidos, outros extrovertidos, alguns têm alto rendimento, outros baixo, a maioria está na média, exatamente a mesma média dos outros alunos. Tentei ver diferenças entre negros e brancos e não achei. Em alguns momentos quis provar que os negros eram melhores. Fracassei, não há mesmo diferença entre os alunos. São todos jovens começando a vida adulta que querem um lugar ao sol. Alguns deles se aproximaram de mim. Tive a oportunidade de conhecê-los melhor, entender sua origem, aprender milhares de coisas com eles. Ganhei uma grande admiração por pessoas que lutaram muito, muito mais que eu, pra entrar na universidade, apesar de muita gente dizer que as cotas facilitaram pra eles. Isso é mentira, as cotas não facilitaram, apenas tornaram possível o que para muitos deles era inimaginável. Para estudantes brancos de classe média, essa possibilidade sempre existiu, porque nasceram bem, comeram bem e estudaram bem. O que ninguém pensa é que todo este privilégio é fruto de uma história que contém trabalho duro e dedicação à acumulação de riquezas (disso todos se orgulham), além a exploração de escravos negros, num passado não muito distante (disso ninguém quer lembrar).

Indo um pouco pra Europa, que tive a oportunidade de conhecer recentemente: história preservada, monumentos espetaculares de mais de 1000 anos, tudo muito lindo! Gente esclarecida, que respeita as diferenças (pelo menos onde estou isso é bem visível), "muito diferente destes latino-americanos que vivem na barbárie". É fácil demais cair nesta armadilha se você ignorar a nossa história. Será que a Europa teria conseguido manter seus monumentos se não fossem as riquezas arrancadas da América Latina, manchadas de sangue dos índios e negros? Pode parecer que os monumentos se mantêm em pé por obra de deus, mas isso custa uma grana astronômica. Sem falar nos que foram reconstruídos por aqui. Será que eles teriam este grau de riqueza e civilização que têm hoje sem todo o ouro, prata, açúcar, café e outras coisas que tiraram de nós até bem recentemente?

Voltando pro Brasil e para a série infinita (ou seria parte de uma série periódica?) de retrocessos que estamos enfrentando com o governo que se infiltrou no Planalto, e de lá não sai, fico na dúvida se as cotas vão continuar existindo. Em 10 anos não dá pra mudar o país nem sua forma de pensar. Precisamos de mais tempo. Essa política de desconstrução de tudo o que avançamos está nos jogando para o abismo do passado e mantendo a América Latina onde sempre esteve: aos pés dos países mais desenvolvidos (aqueles que se desenvolveram às nossas custas).

Precisamos lutar, com unhas e dentes, para não perder tudo o que foi conquistado. Minha única esperança são os jovens. Se alguém pode reverter alguma coisa, são eles.


Agora chega porque o post está enorme e provavelmente ninguém vai ler. Vou publicar só para registrar e saber o que eu estava pensando agora daqui a 10 anos, mais velha, mais ranzinza e com sorte, um pouco menos ignorante.

domingo, 9 de outubro de 2016

Regabofe às nossas custas para tirar nossos direitos

Ok, eu estou revoltada com a PEC 241, e o que estou fazendo? Descrevendo a minha revolta no FB e aqui no blog. O que mais poderia fazer?

Como professora universitária, muito pouco, o que dá pra fazer é protestar contra esse governo golpista onde posso, para deixar bem clara a minha posição e talvez convencer a mais gente que o golpe foi um mal negócio e que o povo precisa se mexer para evitar que os danos sejam ainda maiores.

Fico pensando de que adianta… A imagem do PT ficou tão suja nos últimos tempos que o povo acreditou que o partido inventou a corrupção e que a fez evoluir, a ponto de ter exaurido os cofres públicos e que a única maneira de ajeitar a situação é fazendo todo mundo pagar (leia todo mundo apenas a maioria da população, aquela que depende de saúde e educação pública, sem falar de programas sociais). Cada resvalo do PT foi anunciado, re-anunciado, aquecido, re-aquecido, comentado e criticado à exaustão. Li o último livro do Umberto Eco (Número Zero, recomendo fortemente) e entendi como se faz, foi bem didático. Vou tentar explicar para quem tiver paciência. Se você, jornalista, quer acabar com a moral de uma pessoa, organização, religião ou partido, basta que tenha sempre notícias ruins sobre o seu alvo. Não importa se a notícia não foi exatamente investigada por você ou sua equipe, alguém falou, você reproduz, depois pede desculpas se for o caso  de ser mentira (claro que com menor visibilidade que a acusação). Se tiver um escândalo de corrupção, você fala dele. Para não dar muito na cara, você fala de todos os políticos envolvidos, mas só menciona a sigla partidária do partido que quer detonar. Se houverem escândalos nos quais o tal partido não esteja envolvido, dê um jeito de citar a sigla em qualquer contexto, por exemplo, na cidade X, do estado Y, governado pelo PT, os vereadores (sem sigla) desviaram milhões de reais da câmara municipal. Aí, você que mora na cidade ou conhece alguém que mora lá, relacionou qual partido ao escândalo? Muito bem, o PT!

Por favor, não me confunda, apesar de ser professora, não tenho provas nem convicção de que todos os professores sejam honestos. O mesmo funciona para o PT: apesar de eu ser simpatizante e não esconder isso de ninguém, não tenho provas nem convicção de que todos os filiados e simpatizantes sejam honestos. Em ambos os casos já tive notícias de mal feitos. Nem por isso  acho que ser professora ou simpatizante de determinado partido fazem de mim alguém que tende a fazer o mesmo tipo de coisa. A partir do momento em que há pessoas (enquanto espécimes de Homo sapiens) envolvidas, há problemas, erros e malfeitos. Não é por isso que eu tenho que largar minha profissão ou minha ideologia.

Leio muito sobre cognição e sobre as novas descobertas sobre o funcionamento do cérebro humano. Há estudos que sugerem que nosso cérebro sofre de um mal conhecido como “viés de disponibilidade”. Se você ouve a notícia de um mesmo assalto ou estupro em uma dada região da cidade repetida 20 vezes, seu cérebro não consegue distinguir entre 20 estupros e 20 vezes a notícia de um estupro, de modo que você passa a evitar aquela região, simplesmente pela repetição da notícia. Se os meios de comunicação divulgam 1000 vezes os 10 mal feitos de um determinado partido (no caso do PT) e noticiam apenas uma vez os 1000 malfeitos de outro, qual dos dois será mais corrupto na sua cabeça? Acertou quem chutou o mais noticiado. Não é que eles estejam te escondendo coisas (tenho convicção disso, mas como não tenho provas, prefiro não argumentar), é que eles escolhem o que você vai ouvir mais e te levam ao erro.

Mas voltemos ao que eu queria dizer desde o começo, eu queria falar da PEC 241. Está circulando o FB a notícia de que o golpista mor da nação vai oferecer uma festinha, um regabofe com comes e bebes (tudo do bom e do melhor) para nada menos que 400 deputados e respectivos agregados (esposas, filhos, assessores…). Esse jantar, a ser dado hoje, 09/10, tem como objetivo convencer os parlamentares a votar A FAVOR da PEC 241.


Eu fiquei pensando que hoje (e só hoje), eu queria ter outra profissão.

Eu queria ser deputada, para ser convidada e ter o prazer inenarrável de declinar do convite, só porque já me decidi contra essa atrocidade. Aliás, confio e tenho convicção de que minha deputada não vai à tal festinha…

Eu queria ser cozinheira do palácio (aliás, é o Jaburu ou a família real já foi transferida de mala, cuia e servidores para o Alvorada?). Se eu fosse cozinheira, provocaria problemas intestinais históricos na corja toda, só pra me divertir.

Eu queria trabalhar na manutenção dos banheiros do palácio. Assim, ao saber do problema intestinal destinado aos nobres convidados, daria um jeito de todos os banheiros estarem entupidos na hora da correria visceral.

Eu queria também ser garçonete, só pra assistir de camarote ao enredo e poder sair a tempo de não ter meus pés sujos de excremento, há como eu queria assistir…

Eu também queria ser manobrista. Deixaria todos os carros presos uns aos outros no estacionamento do palácio. Assim, no auge da dor abdominal, as pessoas ficariam presas no estacionamento, e a obra toda teria que ser feita ali, nos jardins do palácio.

Sem acesso ao palácio, eu queria estar em Brasília, para organizar um manifesto em frente à festa. Talvez impedindo a passagem dos carros e fotografando o lindo rostinho de cada parlamentar que tenha se dado ao desfrute de aparecer.

Sem acesso a Brasília, eu queria ser Marcela do País das Maravilhas, ou Marcela Adormecida, que, ao perceber o naipe do sapo que beijou, saísse do palácio, com Michelzinho e tudo para ensinar pro guri o que é ter dignidade, ainda que tardia.

Sem ser primeira-dama, manobrista, garçonete, encanadora ou cozinheira do Palácio (que nem sei qual é o atual, muito confuso isso tudo!) ou deputada, fico aqui mesmo, no meu sofá, desde o umbigo do mundo (é assim que vejo Viçosa, cercada pelas montanhas de Minas), escrevendo absurdos para ver se com esse tipo de linguagem consigo convencer mais alguém de que sofremos um golpe e que os que se apossaram do governo querem mais é que o povo tenha um bom dia (para inaugurar um eufemismo). A cara de pau é tão grande que oferecem uma festa milionária (há quem diga que custará mais de 30 milhões de reais aos cofres públicos) para convencer os deputados (representantes legítimos do povo) a ECONOMIZAR…

Bom dia pra todos nós, quando nos dermos conta de como foi a votação amanhã.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Medidas de Economia ou Temerosas transações?

Depois de 16 meses de mandato moribundo, a presidenta Dilma Roussef foi afastada por 180 dias de seu mandato, por motivos questionáveis e por obra de congressistas no mínimo suspeitos. O problema fundamental nesse processo foram os motivos alegados. Daqui pra frente qualquer governo legitimamente eleito pode ser retirado do poder, basta que a maioria do parlamento assim o decida. Não fosse assim, pelo menos 16 governadores também deveriam ser impedidos e incontáveis outros políticos do executivo deveriam ser investigados e indiciados, incluindo o próprio relator do impeachment no Senado, o ex-governador de Minas Gerais, Antonio Anastasia (PSDB). Conforme audio divulgado ontem pela Folha de São Paulo, o processo foi deflagrado para impedir a continuidade das investigações da Operação Lava-Jato, conduzida pela Polícia Federal.

         Com ou sem o aval da maioria da população, o afastamento é fato e Michel Temer assumiu interinamente (é bom que se diga) o governo. Como primeiro ato, talvez para impressionar os descontentes com a corrupção, reduziu o número de ministérios. Esse ato é muito mais político do que uma medida efetiva de economia: ele mostra à população que o governo não está disposto a gastar o  dinheiro da união com funcionários públicos. Na prática não é bem assim, os concursados continuam e muitas vezes são colocados em funções para as quais não têm competência ou simplesmente ficam encostados. A massa aplaude!

         Para reduzir o número de ministérios e ficar bem na foto, o interino propôs algumas junções espúrias e outras indesejáveis. O Ministério da Cultura foi unido ao da Educação. Os artistas se rebelaram, fizeram manifestações nas ruas e na internet e conseguiram reverter o processo. Ponto para eles e um sinal claro para os demais descontentes: é possível reverter medidas que não agradem, o interino não é forte a ponto de manter medidas impopulares. A junção que mais me preocupa enquanto pesquisadora é a do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação com o Ministério das Comunicações. A comunidade científica reagiu, mas anteriormente, contra a possível indicação de um pastor licenciado da Igreja Universal. Se não foi uma jogada de mestre, foi um golpe (ops! desculpe a palavra) de sorte, o que não parece verossímil. O fato é que o susto do primeiro anúncio foi tão grande que a fusão com as Comunicações pareceu um alívio. Como diria um aluno meu, "o interino colocou um bode muito fedorento na sala, quando tirou, parece que o mundo ficou melhor!".

         O bode saiu, mas o que veio depois não deveria ser um alívio. Acho que esse tipo de medida visa desvalorizar a atividade científica. Isso é no mínimo temerário. Nos últimos 500 anos temos sido produtores de matéria prima e consumidores de produtos elaborados, em todas as áreas. Com um pouco mais de ciência e tecnologia, poderíamos ambicionar ser mais que uma república de bananas, mas essa não parece ser a vontade dos políticos que tomaram o poder. Ciência é uma atividade cara, que além de tudo não produz resultados imediatos…

         Além disso, desvalorizando a atividade científica, o ensino superior, especialmente nas universidades públicas, também sai perdendo. Isso, por sua vez derruba a qualidade do ensino médio e fundamental, numa cascata que a longo prazo só fará mal para a educação no país.

         É qualitativamente diferente ter como professores agentes de produção ou simples repetidores de conhecimento. Na minha área esse fator é nítido. Uma aula de evolução com exemplos locais é muito mais interessante que uma aula baseada em exemplos do norte da Noruega com organismos que mal consigo traduzir o nome. Outros ambientes, outros padrões, outros processos evolutivos.

         Hoje vejo ex-alunos meus que tiveram a oportunidade de se aprimorar no exterior (no tão criticado Ciência Sem Fronteiras) e que voltaram com vontade e capacidade de estudar a nossa biodiversidade. Essa moçada tem publicações em revistas de real impacto (Nature, Science), projetando o Brasil no mapa da biodiversidade não só como fornecedor de espécimes, como éramos há bem pouco tempo, mas como produtor de conhecimento. Parece ufanismo de minha parte, mas é muito complicado tentar elucidar padrões e processos evolutivos neotropicais partindo de exemplos de regiões temperadas. Estamos num crescente de geração de bons trabalhos e bons pesquisadores. Se os investimentos em Ciência e Tecnologia forem cortados por um período muito grande (digamos mais dois anos), nosso crescimento será momentâneo e o investimento terá sido em vão: voltaremos ao status de meros consumidores de conhecimento.

         É bem verdade que a crise que o Brasil enfrenta se fez muito clara para a comunidade científica. Os cortes no orçamento foram enormes, mas eu ainda guardava a esperança de que fosse um momento ruim, que passaria após a recuperação econômica. Essa esperança se baseava nos investimentos feitos anteriormente pelos governos petistas, que ampliaram (em muito) o aporte de verba para ciência e tecnologia. Depois da posse interina de Temer, e sob ameaça de posse definitiva, já não tenho esperanças (espero estar errada).

         Voltando à junção dos Ministérios, a Academia Brasileira de Ciências publicou um documento explicando que o Ministério de Ciência Tecnologia e Inovação tem missões muito diferentes do Ministério das Comunicações. No primeiro há projetos em diferentes âmbitos, que são propostos e julgados pela comunidade acadêmica, que tem seus próprios critérios de mérito. No segundo, que envolve empresas de rádio, TV, imprensa escrita, internet, correios etc, há concessões políticas e o envolvimento de grupos multimilionários. Claramente as duas coisas não são complementares nem compatíveis.

         Quando penso nessa fusão, imagino o dinheiro entrando no ministério e sendo redistribuído lá dentro. A distribuição será feita com que critérios? Meio a meio? Ou pelos critérios de interesse do governo interino? E se o governo interino se tornar permanente? E se as comunicações forem mais interessantes? (Alguém duvida que comunicações são mais interessantes que ciência para um grupo político que tomou o governo e precisa convencer a população de sua legitimidade?) E se eles acharem que ciência e tecnologia são coisas caras demais e que o Estado não deveria bancar?


         Penso que diante dessa fusão a comunidade científica tem que reagir, de forma contundente. O presidente interino já mostrou que não resiste a protestos. Os artistas ocuparam o Ministério da Cultura, protestaram, fizeram alarde na internet e conseguiram reverter a fusão do MinC com o Ministério da Educação. Onde estão os pesquisadores? E os estudantes de Pós-Graduação? E os de Graduação? Ou nos levantamos agora, juntos, independentemente de cores partidárias, ou amargaremos um futuro sombrio, sem grandes esperanças para a ciência brasileira.